A empresa de viagens 123milhas, conhecida por suas campanhas de marketing agressivas para chamar a atenção do público com ofertas de pacotes promocionais, encontra-se nas páginas de notícias envolvendo manobras contábeis e a decisão de buscar a recuperação judicial.
Esse episódio é mais um capítulo de operações contábeis que levanta questões sobre a integridade financeira e as práticas comerciais da empresa.
Relatórios elaborados por peritos nomeados pelo juízo da recuperação da empresa revelam que a 123milhas chegou a gastar o equivalente a cinco vezes o seu faturamento bruto em campanhas de marketing, atraindo clientes para suas ofertas.
Pedalada Fiscal
O que mais chama a atenção nessa história é a maneira de como essas despesas eram registradas, que no caso eram reportadas como ativos no balanço patrimonial da empresa.
Tal manobra, ou famosa “pedalada fiscal” ou "malabarismo contábil” permitia à companhia distribuir dividendos milionários aos acionistas. Ou seja, em vez de registrar essas despesas como custos no período em que ocorreram, a corporação as registra como ativos no balanço patrimonial.
Isso significa que as despesas não são contabilizadas imediatamente como prejuízo, o que poderia afetar negativamente o lucro da organização. Em vez disso, a empresa amortiza (distribui ao longo do tempo) essas despesas como ativos ao longo de vários períodos contábeis. Isso faz com que os custos de marketing pareçam menores a cada ano.
Em termos simples
Em termos mais simples, a 123milhas tratava as despesas com publicidade como ativos, o que significa que, em vez de retirar o dinheiro do caixa da empresa para pagar o marketing, elas eram mantidas no caixa como se fossem recursos disponíveis.
Em outras palavras, é como se a empresa pegasse R$ 1.000,00 do caixa para pagar a agência de publicidade, mas, em vez de registrar essa transação como despesa de marketing, ela a considerasse um valor que a empresa possuía e que os acionistas poderiam retirar como parte dos lucros da empresa.
A prática de amortizar as despesas ao longo do tempo pode dar a falsa impressão de que a companhia é mais lucrativa do que realmente é, uma vez que os custos reais não são refletidos integralmente nos resultados do ano.
Com lucros aparentemente mais altos, a empresa pode distribuir dividendos maiores aos acionistas, que compartilham dos supostos ganhos.
Pirâmides Financeiras
Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Pirâmides Financeiras, as investigações indicaram que a empresa já estava operando com prejuízo quatro anos antes de buscar a recuperação judicial.
CEO da 123 Milhas, Ramiro Júlio Soares Madureira, durante depoimento na CPI das Pirâmides Financeiras (Foto: reprodução/Agência Brasil/Lula Marques)
A situação da 123milhas é complexa e envolve uma série de questões contábeis e comerciais que estão sendo avaliadas pelo judiciário. O futuro da empresa e a resolução de sua dívida substancial permanecem incertos.
Consultoria KPMG
A consultoria KPMG, apesar de reconhecer a irregularidade contábil e a dívida substancial de R$ 2,4 bilhões com consumidores e funcionários, considera que a 123 Milhas atende de maneira "satisfatória" aos requisitos para ser considerada uma empresa recuperável.
A consultoria atribuiu 92 pontos de nota no índice de suficiência recuperacional, bem acima do mínimo exigido, que é de 40 pontos.
A ausência de auditoria externa nas demonstrações financeiras de 2021 e 2022, conforme apontado pela KPMG, suscita preocupações.
Isso não impediu a 123milhas de fechar contratos de antecipação de recebíveis com o Banco do Brasil e o BTG Pactual.
Maior anunciante do país
A empresa também surpreendeu ao gastar 85% de suas vendas brutas em publicidade em 2020, um ano marcado pela pandemia e restrições de viagem.
Em 2021, a empresa intensificou ainda mais as despesas com marketing, que ficaram 147% acima das receitas brutas. Nesse ano, a 123 Milhas tornou-se o maior anunciante do país, com gastos de R$ 2,37 bilhões.
Em 2022, houve uma queda nos gastos com publicidade, para R$ 1,18 bilhão, conforme o ranking do Meio&Mensagem.
No entanto, o relatório da KPMG revela que os gastos com marketing superaram a receita bruta em impressionantes 393%, apontando para uma possível redução ainda maior na receita.
Credibilidade da empresa
A questão da credibilidade também surge como um desafio. A crise de credibilidade parece superar a crise financeira.
Mesmo se a 123milhas fosse reiniciada, a recuperação da confiança e a operação de uma atividade de compra e venda de milhas, passagens aéreas e hospedagem seriam extremamente complicadas diante do grande passivo de quase R$ 2,5 bilhões.
Os problemas para a empresa começaram em agosto deste ano, quando a 123milhas suspendeu pacotes e a emissão de passagens promocionais, afetando viagens já contratadas da linha "Promo".
A Justiça autorizou o processamento do pedido de recuperação judicial feito pela 123milhas, pela HotMilhas e pela Novum Investimentos, sócia da empresa.
Foto destaque: propaganda da empresa 123milhas, no Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek (Reprodução/Agência Brasil/Juca Varella/Arquivo)