Plural. O adjetivo combina com a atriz, apresentadora e agora roteirista e produtora Jacqueline Sato desde suas múltiplas ascendências: japonesa, alemã, indígena e espanhola. Mas, muito além de sua origem, Jacque é plural também na carreira. Começou na TV como apresentadora aos 12 anos e desde então coleciona trabalhos como peças, novelas, séries e dublagens. Em uma nova fase da vida profissional, Jacqueline se prepara para a estreia de “Mulheres Asiáticas”, a série “A História Delas” e seu futuro como a mais nova integrante brasileira da Academia do Emmy.
Em 2023, precisamente no dia 18 de junho, se celebram os 115 anos da imigração japonesa para o Brasil, e é neste contexto que Jacque estreará sua primeira criação, o programa pioneiro “Mulheres Asiáticas”, que tem como objetivo dar visibilidade e espaço de fala às nipo-brasileiras, outros povos asiáticos e seus descendentes. Em entrevista exclusiva ao Lorena.R7, a atriz, apresentadora, roteirista e produtora contou detalhes sobre o prestígio de integrar a Academia do Emmy, o processo de criação do programa, sua personagem em “A História Delas”, conexão com a natureza e muito mais.
“Estamos muito aquém de uma representatividade justa ainda, mas espero que o movimento que já tenho observado internacionalmente afete positivamente nosso mercado e tenhamos mais multiplicidade étnico-racial nos nossos conteúdos por aqui, e aí não estou falando somente de nós, mas de indígenas e negros também. (...)”
Atriz, apresentadora, roteirista e produtora Jacqueline Sato (Foto: Andrea Dematte)
Confira a entrevista na íntegra abaixo:
Você é a mais nova integrante da Academia do Emmy, a maior premiação para os profissionais e produções de TV do mundo! Como você dimensiona tal conquista?
“A ficha teve que cair várias vezes até eu realmente acreditar. Eu, como muitas mulheres, duvido de mim mesma quando me deparo com algo que me eleva ou me desafia em maior grau — a tal da síndrome da impostora. Mas quando ela caiu de verdade, aceitar esse mérito fez reverberar o prazer e a honra receber tamanho reconhecimento, sinal de que meu trabalho de anos de carreira é considerado relevante para a Academia e seus membros. Rolou um flashback, lembrando de quando escolhi que essa seria minha carreira, de quando estava estudando, de quando me formei, dos meus primeiros trabalhos e de todas as vezes que duvidei de mim, e também todas as vitórias e superações.
Esse tipo de valorização e integração com pessoas que admiro tanto só me inspira e me faz querer realizar muito mais. Eu, que tenho mania de me cobrar demais, recebo isso como uma luz abrindo meu olhar para o meu próprio autoreconhecimento. E, claro, me encheu de gratidão e me fez pensar na responsabilidade que vem junto com o valor que tem tudo isso. Eu, que sempre falo da representatividade amarela no audiovisual, ainda não vi outra mulher amarela brasileira ocupando esse espaço. Espero que logo outras venham a ocupar lugares nesta mesa! Fico feliz que já haja a representatividade de mulheres de outros países, e que eu tenha entrado para a Academia na mesma leva que ninguém mais, ninguém menos, que Miky Lee, uma mulher estratosférica que revolucionou o mercado audiovisual na Coreia do Sul, mais conhecida por ser a Produtora Executiva do vencedor do Oscar “Parasita”, mas que já fez isso e muito mais.”
Como foi o processo de idealização do programa pioneiro "Mulheres Asiáticas"?
“Partiu de uma inquietação antiga minha, que se potencializou na pandemia. Cresci sem me ver representada na mídia e claro que isso tornou minhas possibilidades de sonho e de carreira ainda mais desafiadoras. Digo que potencializou durante a pandemia por dois motivos:
- Olhei pra dentro como nunca antes, não só pela situação em que todos nós vivíamos, mas também por que fui convidada a palestrar para o TEDX — minha primeira vez fazendo isso — e isso me fez mergulhar profundamente neste tema, nas minhas vivências, em dores que eu nem achava que existiam. Antes, eu nem sabia nomear, mas ao longo do tempo fui percebendo que não era uma questão individual, e sim coletiva. Isso me potencializou a querer agir mais em direção a esta transformação necessária que eu há tempos esperava, mas que muito pouco havia acontecido. Constatar que 66 anos se passaram desde a primeira novela na TV brasileira, em 1951, até o surgimento da primeira amarela como protagonista, em 2017, me deixou em choque. É uma vida! A nossa presença é ínfima e, muitas vezes, reduzida a estereótipos ou hipersexualização. Sem contar que é comum que se tenha um papel aqui, e outro só depois de muito tempo, o que torna a possibilidade de se sustentar com o seu ofício algo quase impossível, levando muitas a desistirem. Pude observar, ao longo da minha carreira, que existe mesmo uma predominância de papéis extremamente estereotipados e que deturpam, inclusive, a forma como a sociedade nos vê, pois tudo o que a Indústria Cultural produz afeta, e muito, no subconsciente e na forma como a sociedade enxerga e age no mundo.
- A pandemia foi um período em que testemunhei o ódio contra asiáticos se manifestando como nunca antes na história da minha existência. O movimento "Stop Asian Hate", nos Estados Unidos, que surgiu após várias pessoas, especialmente mulheres e idosos, serem brutalmente agredidas e assassinadas nas ruas simplesmente por serem asiáticas e serem consideradas as "culpadas" pela existência do vírus. Isso me afetou profundamente, e tive medo de que algo semelhante pudesse acontecer aqui no Brasil também.
Tem mais coisas, mas estes julgo serem os dois principais propulsores para que eu chegasse a pensar: “Basta! Preciso fazer alguma coisa”, e não só ficar estudando como atriz, esperando que chegue um bom papel para que eu possa mostrar meu trabalho e provar que nós somos muito mais do que o que as pessoas, em geral, pensam que somos. Esse programa vem para que finalmente nos enxerguem como somos através dos nossos próprios olhos, que escutem as nossas histórias, e não uma projeção fundada num imaginário coletivo construído pela soma dos olhares de, predominantemente, homens brancos sobre nós, o que, muitas vezes, traz doses de fetiche, exotificação, estereótipos, etc.
E então criei o programa que visa dar visibilidade, voz e, acima de tudo, valorizar a trajetória de mulheres reais. Começando com as nipo-brasileiras, recorte ao qual eu pertenço, mas com a vontade de que seja um sucesso para que possamos ter outras temporadas revelando a riqueza e multiplicidade que existe dentro daquilo que as pessoas leem como “asiáticas” — lembrando que a Ásia é composta por quase 50 países, muito diversos cultural e sócio-politicamente entre si, mas pouca gente se lembra disso. Através de um formato que mistura documentário, narrado pelas pessoas mais importantes de suas vidas, com entrevistas — que eu prefiro chamar de uma conversa de cura e vulnerabilidade —, surge um desafio. Esse desafio vai fazer com que cada uma das duas convidadas do episódio realize algo pela primeira vez em suas vidas. Espero que a gente consiga ampliar esse imaginário coletivo e fazer com que a representatividade real destas que até hoje foram tão pouco vistas e ouvidas finalmente aconteça e que possa gerar a sensação de acolhimento e inspiração tanto em quem assiste, quanto em quem participa.”
Em "Mulheres Asiáticas", veremos a pluralidade e riqueza dos povos asiáticos. Para você, descendente de japoneses, qual é a importância de abrir esse portal de representatividade para o Brasil?
“Imenso! Como mencionei antes, há pouco conhecimento profundo sobre nós e nossas diferenças, o que leva muitas pessoas a perpetuarem a "piada", um grande equívoco, dizendo que "somos todos iguais" ou acreditando que somos semelhantes ao que veem em filmes, novelas e séries. O que torna tudo pior é que há poucos papéis que nos representam verdadeiramente, até agora. Além disso, a invisibilidade da maioria dos povos do leste asiático é ainda mais grave se comparada a nós, descendentes de japoneses. É horrível quando as pessoas generalizam e atribuem algo tipicamente "japonês" a quem não é japonês ou descendente. Seja comida, apelido, cultura ou comportamento...li uma vez que um dos pilares do preconceito racial é não reconhecer e validar a individualidade dos povos racializados, o que faz total sentido. Pense se confundiriam ou projetariam erroneamente culturas e hábitos de pessoas brancas, dizendo que são todas iguais. A maioria sabe distinguir perfeitamente a culinária italiana da espanhola, francesa e americana. Neste exemplo, estou falando do “mundo real”, mas se entrarmos no mundo da ficção: feche os olhos e imagine a cena de um filme, de qualquer gênero. Imagine os personagens principais. Teve algum descendente de asiático entre eles? Quantos conteúdos você já assistiu onde a história era liderada por alguém branco? Quantos já assistiu em que a história era liderada por alguém descendente de asiáticos?
Estamos muito aquém de uma representatividade justa ainda, mas espero que o movimento que já tenho observado internacionalmente afete positivamente nosso mercado e tenhamos mais multiplicidade étnico-racial nos nossos conteúdos por aqui, e aí não estou falando somente de nós, mas de indígenas e negros também.”
Jacqueline Sato (Foto: Andrea Dematte)
Em breve, poderemos vê-la na série "A História Delas", que será transmitida pelo streaming Star+. O que pode nos contar sobre o projeto?
“Que foi uma delícia de fazer e que é uma história que, sim, traz representatividade de um jeito muito interessante e nada estereotipado. Que valoriza a narrativa feminina, através de mulheres fortes, cheias de defeitos. Quando recebi o roteiro, uma das coisas que mais me alegrou é que na descrição da minha personagem não tinha nenhuma descrição que remetesse à minha ascendência, ou qualquer característica na personagem que necessariamente remetesse a algo tradicionalmente japonês — não que eu tenha algo contra, amo e valorizo todos os lados da minha ancestralidade, mas é cansativo quando só pensam em você para esse tipo de papel que impreterivelmente tenha que ser alguém com essas características, porque a verdade é que sou brasileira, e poderia ser escalada para os papéis mais diversos, nas mais diversas profissões e com os mais diferentes tipos de caráter. Por isso é que a Mirella me surpreendeu positivamente: uma ex-modelo falida, casada com um agiota, e dona de uma clínica de depilação a laser; uma pessoa muito solar, expansiva e que ama chamar a atenção com suas roupas coladas, decotadas e coloridas, suas unhas e cílios postiços, sua presença nas redes sociais e seu rebolar até o chão. Ou seja, uma mulher que vai contra todo e qualquer estereótipo de uma mulher “asiática”. A direção, elenco e equipe foram sensacionais.”
Atualmente você é embaixadora do Greenpeace Brasil. Quando e como surgiram seus ideais de preservação do meio ambiente e direitos animais?
“Nasceram comigo, (risos). Desde que me conheço por gente, tenho essa sensibilidade e preocupação. Para se ter uma ideia, na escola, quando na aula de biologia ouvi pela primeira vez sobre extinção, aquecimento global, e destruição da natureza, aquilo já virou uma preocupação para mim. E sobre o abandono e maus tratos de animais também. Por exemplo, resgatei a primeira ninhada, com 7 gatinhos, aos 9 anos de idade. Desde lá soube que eu podia, sim, ajudar. Nem que fosse um pouco, mas podia! A mesma coisa em atitudes que sejam congruentes com quem diz que ama a natureza. Desde novinha, separo lixo orgânico do reciclável, cuido e me conecto com o meio ambiente. Digo que estar em contato com ela é o que mais me aproxima com Deus, com algo maior, seja lá o nome que cada um prefira dar. Estar em silêncio, em contato com a Natureza, é a minha Igreja, é a minha forma de rezar e de recarregar a energia. Fui crescendo, a consciência e conhecimento expandindo, bem como minha capacidade de ação.
Passei a tomar atitudes e criar hábitos mais sustentáveis: na alimentação (não como carne vermelha e nem frango, dou preferência a produtos orgânicos, etc.); no consumo (consumir menos e mais conscientemente, preferir produtos que vão durar muito tempo, dar preferência a marcas que têm consciência ética e socioambiental, ser adepta ao slow fashion e à moda atemporal, dizer não à descartáveis), nos produtos de beleza e de limpeza da minha casa (opto pelo clean beauty, pois não faz sentido usar algo no meu corpo que possa fazer mal para mim ou pro planeta, e também não faz sentido “limpar” minha casa com algo que esteja poluindo o planeta; por isso, opto pelos naturais e biodegradáveis); e mais uma porção de outras mudanças que já fiz e ainda quero fazer. Sei que quero fazer muito mais, mas tenho a certeza de que fazer um pouco é melhor do que não fazer nada.”
Você atuou em novelas da Globo, como "Além do Horizonte", "Orgulho e Paixão” e “Sol Nascente", e também, em produções na HBO, a série "Os Ausentes", e o filme "Talvez Uma História de Amor". Quais são as maiores diferenças entre atuar na TV e no streaming?
“Minha dedicação e entrega são do mesmo nível. A diferença é o tempo que se tem com o material para estudar, a quantidade de ensaios e conversas em cima das cenas, a forma e ritmo que é gravado. Em qualquer que seja a plataforma, meu mergulho é e sempre vai ser o mais profundo possível, com o máximo de presença e experimentação possível.”
Jacqueline Sato (Foto: Andrea Dematte)
Na Netflix, é dubladora do anime "My Hero Academia: 2 Heróis", como foi a experiência de atuar na função? Pretende dublar outras produções futuramente?
“Eu amei, ainda mais quando é anime ou desenho animado. Dá para pirar muito, pois você pode ser personagens muito inusitados. Exige muita disciplina, atenção, presença e capacidade de se arriscar. Não é como o trabalho de atriz, que você recebe o texto com alguma antecedência e vai estudando. Não. É tudo ali, na hora. Ler, ouvir o original e criar a sua versão dentro do tempo e mood pré-existente. É muito intenso. E, sim, dublaria outras produções!”
Você é uma profissional plural que atua em muitas vertentes. Quais são suas válvulas de escape para fugir um pouco da correria do cotidiano e manter a mente saudável?
“Como falei lá em cima: Natureza. O contato com ela é o que me reconecta comigo mesma e com o todo. Pode ser só alguns minutinhos, já faz toda a diferença. Meditação. Faço todo dia, de 10 minutos a 1 hora, dependendo do dia. Isso virou algo sagrado pra mim, foi o que me salvou em momentos de maior crise na minha vida até agora. Yoga, nem que seja 10 minutos, pois também me alinha, me conecta com o meu corpo e me reenergiza. Comecei na pandemia e segui fazendo. Escrever todo dia, à noite, antes de dormir, as 3 coisas do dia pelas quais você é mais grata. Parece bobeira, mas faz muita diferença. Tem dia que, se a gente não presta atenção, vai no piloto automático, parece que foi atropelada, parece que foi um dia ruim, parece que não conseguiu realizar nada do que queria, mas se parar para fazer esse exercício simples, vai ver que teve sim, pelo menos, 3 coisas boas que aconteceram. Fora isso, terapia uma vez por semana. E exercício físico, que já foi mais assíduo, mas vou retomar para ser diário. Quando está muito puxado, fico entre academia e corrida. Quando estou no meu melhor, consigo incluir pilates, dança e luta. Aprendi a me permitir ser maleável e fluir conforme é possível no momento. Sem me cobrar demais, porém sempre atenta a mim e aos sinais do meu corpo e ao que ele pede.”
Foto destaque: Atriz, apresentadora, roteirista e produtora Jacqueline Sato. Foto: Andrea Dematte