Nos últimos 30 anos, cerca de 65,6 mil brasileiros foram resgatados de condições análogas à escravidão, em mais de 8,4 mil ações fiscais realizadas pelo governo federal. É um número alarmante, que revela a persistência de práticas de exploração em pleno século XXI. Esses dados, divulgados pelo Ministério do Trabalho nesta terça-feira (28), no Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, mostram que a escravidão contemporânea ainda é uma ferida aberta no Brasil.
Por trás de cada número está uma vida, uma história de luta pela dignidade. Como a de Leda Lúcia dos Santos, que passou décadas trabalhando como empregada doméstica sem receber salário. Entregue a uma família na infância, Leda nunca teve a chance de estudar ou brincar como uma criança deveria. "Trabalhava muito, como se fosse um adulto", relembra ela. Após ser resgatada, aos 61 anos, sua luta agora é por um recomeço.
Outro caso emblemático aconteceu em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, em 2023. Trabalhadores foram atraídos da Bahia com promessas de bons salários para a colheita de uvas. Ao chegarem, enfrentaram jornadas exaustivas, alimentação estragada e até violência física. Foram 207 pessoas resgatadas, que hoje carregam cicatrizes emocionais profundas. "A proposta era boa, mas o que vivemos foi um pesadelo", desabafou um dos resgatados.
Auditoria e fiscalização em ação contra a escravidão (Foto: reprodução/MPT)
Cenário atual: o aumento das denúncias
Em 2024, o governo federal realizou 1.035 ações fiscais, que resultaram no resgate de 2.004 trabalhadores submetidos a condições degradantes. Apesar de ser um número menor do que o de 2023, quando mais de 3,1 mil pessoas foram resgatadas – o maior índice dos últimos 14 anos, a luta continua intensa.
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, o número de denúncias cresce ano após ano. Em 2023, o Disque 100 recebeu 3.430 denúncias de trabalho escravo, um aumento de 61% em relação ao ano anterior. Já em 2024, foram 3.959 denúncias, o maior número desde a criação do canal, em 2011. Esses dados mostram que, embora a prática ainda persista, a conscientização da população está aumentando.
A face da exploração: quem são os mais afetados?
As atividades mais associadas ao trabalho análogo à escravidão variam entre o meio rural e urbano. Em 2024, os setores com maior número de resgatados foram:
- Construção civil: 293 pessoas;
- Cultivo de café: 214 pessoas;
- Cultivo de cebola: 194 pessoas.
Um dos resgatados em uma operação no Amazonas, exemplifica a dureza dessa realidade. Após sofrer um acidente enquanto trabalhava em uma área de desmatamento ilegal, ele ficou sem cuidados médicos por horas. "Só sofríamos humilhação. Nos tratavam como nada", desabafou.
A maioria dos regastes tem ocorrido em áreas urbanas (Foto: reprodução/ASCOM MPT)
Caminhos para mudar o futuro
O trabalho análogo à escravidão está claramente definido no Código Penal: submissão a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, sujeitando o trabalhador a condições degradantes ou restrição de locomoção devido a dívidas. Mas mais do que leis, o que essas pessoas precisam é de um sistema que as acolha e as ajude a reconstruir suas vidas.
Hoje, quem é resgatado tem direito ao Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado – três parcelas de um salário-mínimo –, além de apoio da rede de Assistência Social. Ainda assim, muitos lutam para superar os traumas e recomeçar.
Enquanto isso, o Ministério do Trabalho desenvolve políticas específicas para proteger grupos vulneráveis, como mulheres e trabalhadores domésticos, buscando atacar a raiz do problema.
Denuncias anônimas ajudam no combate ao trabalho escravo
O Sistema Ipê, disponível na internet, oferece uma plataforma para denúncias anônimas de casos de trabalho escravo. Qualquer pessoa que testemunhar ou tiver conhecimento de situações suspeitas pode utilizar o sistema para comunicar as autoridades, garantindo sigilo e segurança ao denunciante. As informações fornecidas são essenciais para que as investigações sejam conduzidas de forma eficaz, permitindo a proteção e o resgate das vítimas. Cada denúncia registrada contribui para o enfrentamento do trabalho escravo e a promoção da dignidade humana
Foto Destaque: Por trás de números frios, histórias de sofrimento e resistência ganham voz, dia 28 de janeiro, dia nacional contra o trabalho escravo (Reprodução/MPT)