Com mais de 100 anos de existência, os cinemas já passaram por muita coisa, e sempre conseguiram se manter entre as formas de entretenimento mais populares da sociedade. Nas últimas décadas esses espaços enfrentaram diversos adversários poderosos, como a televisão, o vídeo cassete e depois o DVD e Blu-ray, os canais de tv pagos, a internet e finalmente o streaming de filmes e séries, além de todas as outras questões econômicas, como o aumento do custo do metro quadrado e o preço da energia elétrica.
A cada novo desafio que surgia os cinemas se adapitaram pela sobrevivência, mas a pandemia da Covid-19 vem acelerando esse processo de desgaste do modelo, e aumentando exponencialmente o risco das redes de cinema perderem essa guerra. O que pode marcar uma derrota irremediável das salas e com isso determinar uma nova mudança na maneira de realizar, promover e ver obras audiovisuais.
Público usa máscara enquanto assiste a filme em um cinema recém-reaberto na China. (Foto: Reprodução/ Chinatopix via AP/ G1)
E para piorar essa situação, nos últimos dias a produtora Warner Bros., que tem mais de 95 anos de existência, parece ter fincado mais um prego no caixão dos cinemas quando anunciou que vai lançar todos os seus filmes de 2021 de forma simultânea com o seu canal de streaming o HBO MAX. Mas será mesmo que esse é fim do cinema como se conhece?
O acordo entre AMC e Universal
Em meados de abril, quando a pandemia ainda era pouco compreendida e os especialistas indicavam máscaras apenas para os sintomáticos, a maioria das salas de cinema já se encontravam frechadas a pelo menos um mês, e os adiamentos cinematográficos começavam a se empilhar. Foi então que a produtora Universal deu o primeiro passo para por os cinemas contra a parede.
O estúdio decidiu lançar a animação "Trolls 2" diretamente nos serviços virtuais americanos. A decisão acabou se provando lucrativa, com o filme faturando cerca de 100 milhões de dólares (R$ 542,8 mi) em suas primeiras três semanas de locações. Por causa deste bom resultado, o CEO da NBCUniversal acenou para a possibilidade de adotar a estratégia de lançamento simultâneo nos cinemas e no streaming, mesmo após a amenização da pandemia.
Mas a resposta dos cinemas veio rápido, e a Cineworld, empresa dona da rede de cinemas americana Regal Cinemas, e a AMC Theatres, maior rede de cinemas dos EUA, logo anunciaram que não iam mais exibir títulos da Univeral Pictures enquanto o estúdio não voltasse atrás na decisão de lançar longas simultaneamente nos cinemas e nos serviços de streaming.
Logo da AMC e da Universal. (Foto: Reprodução / Indie Wire)
Porem após a imensa repercussão negativa em cima da Universal, o estúdio voltou atrás, e ao invés de encarrar uma briga com as redes, fechou um acordo que que não prejudicasse tanto os cinemas. O novo trato reduz o tempo em que um filme ficará exclusivamente em cartaz (pelo menos nas salas da AMC) antes de ser distribuído a outras plataformas domésticas, além disso a rede de cinemas receberá parte dos ganhos com os vídeos sob demanda.
Segundo este convênio, qualificado de "histórico", os novos filmes do Universal ficarão disponíveis em sistemas de vídeo sob demanda depois de 17 dias de exibição nas salas. Historicamente, os grandes filmes ficavam em média três meses em cartaz antes de ir para qualquer outra plataforma.
A Warner não sabe brincar
Mas o embrolho com a Universal e as constantes perdas por conta da pandemia global, pareciam estar prestas a ficar para trás. Já que depois de quase um ano sem vendas de ingressos, pipocas ou publicidade enquanto seus gastos com aluguéis, iluminação, segurança, manutenção e impostos seguem gerando despesas e sem nenhuma receita entrando, a vacina finamente está começando a ser aplicada e as esperanças dos cinemas se reforçam.
Apesar disso a Warner, que já tinha entrado em um acordo de cavalheiros as redes de cinema para lançar Mulher Maravilha 1984, em 25 de dezembro, tanto no HBO Max como nos cinemas americanos, com o intuito de obter lucro mesmo em durante o isolamento, a empressa apunhalou parceiros comerciais e cinemas norte-americanos com uma revelação assustadora e inesperada.
Apresentação do serviço HBO Max. Foto: Reprodução/ Café com Nerd)
A poucos dias a emprese anunciou por meio da empresa, e sem comunicar os estúdios apoiadores, que todos os seus filmes de 2021 vão estrear ao mesmo tempo nos cinemas e no streaming do HBO Max nos EUA assim como Mulher Maravilha, e serão disponíveis em em 4K Ultra HD, HDR10, Dolby Vision e Dolby Atmos. Isso inclui Matrix 4, O Esquadrão Suicida, Godzilla vs. Kong, Mortal Kombat, Duna e muitos outros títulos. Os lançamentos vão permanecer no serviço durante um mês e não terão custo adicional.
Segundo comunicado da WarnerMedia: “O modelo híbrido foi criado como uma resposta estratégica ao impacto da pandemia global”. E após ficar um mês no HBO Max dos EUA, cada filme deixará a plataforma e continuará nos cinemas nos EUA e em territórios internacionais, com todas as janelas de distribuição habituais aplicáveis ao título.
Ann Sarnoff, executiva da WarnerMedia, afirma que esse é um meio-termo para apoiar as salas de cinema “com um fluxo constante de filmes”, ao mesmo tempo em que dá a escolha de assistir em casa para quem não possa (ou não queira) frequentar esse tipo de local durante a pandemia do novo coronavírus. Mas embora seja uma estratégia para tornar possível o lançamento de filmes em tempos pandêmicos, muitos temem pelo que isso significa para o futuro dos cinemas.
As reações contra Warner
Mas os as redes de cinemas, os diretores de grande parte dos filmes e até mesmo as empresas parceiras da Warner não viram com bons olhos esse “meio-termo”. Principalmente por ter anunciado seus planos sem consultar os cineastas por trás desses filmes, o que gerou uma reação muito negativa de nomes como Christopher Nolan e Denis Villeneuve.
Após a abordagem abrupta da Warne, em uma estratégia considerada favorável a plataforma HBO Max em detrimento dos exibidores tradicionais, as retaliações contra a decisão começaram a surgir de forma exponencial. A Legendary Entertainment por exemplo, que é responsável pelos filmes Duna e Godzilla vs. Kong, pode questionar a decisão da Warner Bros. de forma judicial.
Cena dos filmes Duna e Godzilla vs. Kong. (Foto: Reprodução/ Legendary Pictures/ warner Bros./ Cine Pop)
Segundo o site norte-americana Deadline, a produtora só tomou conhecimento da decisão da Warner 30 minutos antes do anúncio oficial ser feito ao grande público. A publicação também releva que a Legendary e seus parceiros financiaram 75% dos 165 milhões de dólares do orçamento de 'Dune' e aplicaram uma quantia semelhante de financiamento em 'Godzilla vs. Kong'.
O CEO da AMC, Adam Aron, falou sobre o assunto em uma carta aberta onde criticou a Warner. Ele começou explicando que apoiou a decisão de lançarem Mulher-Maravilha 1984, por ser um momento atípico e bem delicado no cinema.
Porém, Aron continua dizendo que não imaginava que o estúdio usaria essa mesma ferramenta para lançar todos os seus filmes em 2021, e que isso está provocando estragos consideráveis na indústria cinematográfica como um todo. Ele ainda nota que, com as expectativas de vacina no ano que vem, não faz sentido lançar os filmes em streaming, já que os cinemas já devem estar funcionando ativamente no próximo ano.
“Claramente, a Warner Media pretende sacrificar uma porção considerável de sua divisão de estúdio e filmes, parceiros de produção e cineastas, tudo para subsidiar o HBO Max. Quanto ao nosso trabalho na AMC, faremos de tudo ao nosso alcance para assegurar que a Warner não faça isso em detrimento a nós. Iremos procurar termos econômicos agressivos que possam preservar nossos negócios, declarou o CEO no documento.
Sala de cinema da AMC nos EUA. (Foto: Reprodução/ Divulgação)
Para o diretor Christopher Nolan, um dos cineastas mais conceituados da Warner Bros. detonou o estúdio publicamente, chegando a dizer que o HBO Max seria “o pior serviço de streaming”.
“Alguns dos maiores cineastas e estrelas de cinema de nossa indústria foram para a cama na noite anterior pensando que estavam trabalhando para o melhor estúdio de cinema e acordaram para descobrir que trabalhavam para o pior serviço de streaming”, declarou Nolan em entrevista ao Entertainment Tonight, uma semana após o anúncio da Warner.
Em outra oportunidade o diretor disse ao portal EW, que estava “incrédulo” quando ouviu a notícia pela primeira vez, particularmente irritado com a forma que notícia foi revelada: “Há muita controvérsia em torno disso, porque eles não contaram a ninguém”, explicou.
Já o diretor Denis Villeneuve responsável pelo filme “Duna”, foi mais além e escreveu um enorme artigo para o site Variety, onde disse que descobriu que seu épico de ficção científica iria para a HBO Max ao mesmo tempo que nos cinemas apenas quando a WarnerMedia fez o anúncio.
Diretor Denis Villeneuve no set de filmagens de Duna. (Foto: Reprodução/ Warner Bros.)
“Não há absolutamente nenhum amor pelo cinema, nem pelo público aqui”, escreveu Villeneuve sobre a decisão. “Tudo gira em torno da sobrevivência de um mamute das telecomunicações, que atualmente tem uma dívida astronômica de mais de US$ 150 bilhões”, escreveu o diretor.
“Portanto, embora “Duna” seja sobre cinema e público, a AT&T trata de sua própria sobrevivência em Wall Street”, ele continuou. “Com o lançamento do HBO Max, um fracasso até agora, a AT&T decidiu sacrificar os lançamentos de 2021 da Warner Bros. inteiro em uma tentativa desesperada de chamar a atenção do público”, disse Villeneuve na publicação.
(Foto Destaque: Cena do filme king kong vs godzilla. Reprodução: Legendary Pictures/ warner Bros. Pictures/ AMC/ Montagem: Jonathan Rosa)