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[Crítica] Luca Guadagnino crava sua pluralidade com o intimista e metafórico “Queer”

O cineasta que dirigiu filmes como “Rivais” e “Me Chame Pelo Seu Nome” prova novamente que é um dos mais interessantes da atualidade com o longa estrelado por Daniel Craig e Drew Starkey; confira nossa crítica com spoilers

12 Dez 2024 - 06h45 | Atualizado em 12 Dez 2024 - 06h45
[Crítica] Luca Guadagnino crava sua pluralidade com o intimista e metafórico “Queer” Lorena Bueri

“A porta já se abriu, não pode fechar agora. Só te resta fechar os olhos” –Queer (2024)

O cinema de Luca Guadagnino é um dos – senão o mais – interessantes da atualidade. O cineasta italiano transparece sua essência em todas as suas obras. É como se todos os seus filmes, tão diferentes entre si, transpirassem seu nome, sua marca, seu estilismo tão marcante. E em “Queer”, Guadagnino leva o espectador a uma espécie de culto religioso, é algo que vai além do tangível e transborda para quase espiritual. Através de suas metáforas, sempre muito bem trabalhadas, guia Daniel Craig e Drew Starkey à uma viagem sensorial, íntima, brilhante como uma noite estrelada e melancólica como cuspir o coração para fora do peito.

Trama de “Queer”

Inspirado no livro homônimo de William S. Burroughs, uma quase biografia, e ambientado no final da década de 1950, pós Segunda Guerra Mundial, em um México estilo retro futurista – propositalmente artificial e deslocado – , vive o expatriado americano William Lee, um homem de meia idade, gay e solitário, que busca em companhias de uma noite, um tipo de afago à sua alma sozinha.


Assista ao trailer de "Queer" (Reprodução/YouTube/Fãs de Cinema)


Viciado em heroína e outras drogas e, mesmo que, assumidamente gay, carregado por algumas camadas de preconceito inatas às pessoas da época, Lee conhece Eugene Allerton, um ex-militar na flor da idade. Discreto, arrumado e controlado, Allerton era tudo o que o outro faltava, e o contraste faz com que Lee se veja totalmente fascinado e obcecado pelo jovem rapaz, buscando brechas para que pudesse ter chances de algo.

Com certa insistência, os dois desenvolvem uma relação de clara dependência, em uma trama que vai versar sobre vícios e o limite tênue entre o desejo e a rejeição, o real e o imaginário, o telepático e o carnal. Esqueça tudo que pensa sobre “Queer” antes de assisti-lo e se abra para uma viagem literal e metafórica por dentro da alma e das entranhas de Lee, à convite de um Guadagnino cada vez mais autoral e delicioso de assistir.

Telepatia, vícios e desejos: o segredo de “Queer”

Luca é um mestre para evidenciar desejos através dos corpos e olhares de seus personagens. Todos os seus filmes têm isso em comum, mesmo que de formas muito únicas. Se em outros longas o comum talvez seja representar a ânsia por algo através da imaginação ou direcionamento de câmera, aqui, o sonhado se mostra através de sobreposições. Se juntos, durante uma conversa, Lee deseja acariciar o rosto de Eugene, Luca sugere isso através de um movimento quase fantasma, como se a mão do personagem fosse um plasma, algo telepático, do tocar sem tocar. A telepatia é a palavra-chave de “Queer”. Se em “Me Chame Pelo Seu Nome” o amor é tato, em “Rivais”, a visão, e em “Até os Ossos”, o paladar, aqui, ele é um movimento constante entre todos os sentidos, se tornando, a partir da segunda metade do longa, uma dança magnética no umbral da dicotomia entre o real e o intangível.


Daniel Craig e Drew Starkey em "Queer" (Foto: reprodução/Mubi)


No equilíbrio desequilibrado entre a organização de Eugene, o caos de Lee e o artificial que os cerca, somos adentrados na psique de um viciado, que se vê diante de seu novo objeto de frenesi, indo cada vez mais profundo conforme os capítulos vão se desdobrando, a ponto de ser chocante a mudança drástica de atmosfera quando o casal viaja em busca de uma planta chamada Yagé, que, segundo Lee, aflora a telepatia. Novamente o tocar sem tocar entra em voga, em uma metáfora que ultrapassa o limiar entre o físico e o espiritual, os desembocando na cena mais impactante, inesquecível e simbólica – para nós e para Lee, de forma adoecedora, para ele – do longa.

A dinâmica pulsante entre Lee e Eugene

Não procure por personagens perfeitos nas obras deste cineasta. Isso é algo que não achará. O charme é justamente as personalidades dúbias e opostas de seus protagonistas. Craig e Starkey encontraram o meio termo ideal entre a experiência de um e o frescor do primeiro papel cinematográfico do outro. Enquanto Eugene é o silêncio, e isso nos é passado não só através de sua aparência polida e “clean”, mas também por sua falta de exposição e cuidado excessivo ao que se permite demonstrar – daí o lado militar passa a fazer muito mais sentido –, Lee é o berro, o grito sufocado por trás de uma aparência desleixada e bêbada, que se expõe excessivamente, às vezes até sem correspondência do outro lado. 

Eugene é tão fechado, que não conhecemos seu interior, ao contrário de Lee, que nos abre uma janela para vermos seu cerne confuso e que luta para se livrar de seus vícios, de todos eles. Até mesmo as cenas de sexo, outro aspecto brilhante em Guadagnino, são diferentes de acordo com qual dos dois está no ponto de vista. A trilha sonora, instrumento sempre potente nas obras dele, reforça a mudança de tom entre eles. Ao olhar de Lee, a prática sexual é terna, conectada, delicada. É lindo de se ver, ouvir, sentir. Já para o jovem, é mais carnal, prática, silenciosa, misteriosa. O sexo reflete quem são. Os corpos gritam ou sufocam.


Daniel Craig e Drew Starkey em "Queer" (Foto:reprodução/YouTube/Fãs de Cinema)


Na cena mais linda e emblemática de todo o filme, que, arrisco dizer, é uma das mais impactantes de 2024, William e Allerton se fundem em um só. Seus corpos se tornam um, suas qualidades e defeitos se aglomeram, a ponto, de, seus corações (com leitura bem aberta e dual para cérebro) explodirem para fora dos peitos. É poético, e ao mesmo tempo assustador. A beleza de “Queer” mora nessa mistura dolorosa e maravilhosamente bizarra entre compulsão e ternura, sob as mãos de um verdadeiro pintor de telas vivas.

Os lados de Guadagnino

Nos parece chocante Luca Guadagnino entregar duas obras tão diferentes no mesmo ano. Enquanto o excelente “Rivais” nos traz à tona seu lado mais prático e tátil, “Queer” nos guia de volta ao fantasioso que presenciamos em “Suspiria” e “Até os Ossos”, com pegadas tímidas do clássico “Me Chame Pelo Seu Nome”. Mas, essa junção, resulta no longa mais original do cineasta.

Luca, de 53 anos, se torna cada vez mais, um diretor delicioso de ser assistido. Como uma roleta, nunca sabemos o que esperar sobre suas tramas e metáforas muito bem construídas, mas com a segurança de sabermos que vem algo louvável. Com “Queer”, que estreia hoje (12) nos cinemas brasileiros, o italiano crava seu trabalho mais autoral, mas ainda mantendo suas raízes, com muito tesão, alegorias, complexidade e um domínio surreal acerca dos corpos de seu elenco e trilhas sonoras extremamente marcantes, que moram na nossa cabeça por tempos a fio.


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Luca Guadagnino com seus protagonistas, Drew Starkey e Daniel Craig (Foto: Dominique Charriau/Getty Images Embed)


Ele nos embala ao som de canções clássicas como “Come as You Are” e “Leave me Alone”, misturando a juventude rebelde dos anos 80 e 90 e músicas originais, assinadas novamente por Trent Reznor e Atticus Ross (“Rivais”), como “Vaster the Empires”, canção na voz de ninguém menos que Caetano Veloso. Com uma nova versão de “Psicopata Americano”, já com protagonista definido, Austin Butler, Luca Guadagnino é definitivamente um cineasta que merece sua atenção e entusiasmo.

Nota: ★★★★½

Foto destaque: Drew Starkey e Daniel Craig em "Queer" (Reprodução/IMDB/A24)


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