Animações com animais como protagonistas é algo que a humanidade fez com que nunca saísse de moda. De “Gato Felix” (1919), ainda na época do cinema mudo, à “Zootopia” (2016), em que os animais, mais que nunca, têm personalidades e costumes humanos, os estúdios seguem procurando se reinventar para que a temática, já tão explorada, siga rendendo bons frutos. No entanto, indo na contramão das tão corriqueiras tramas em que bichos assumem lugar de pessoas, “Flow”, a animação da Letônia, indicada em duas categorias no Oscar 2025 e vencedora do Globo de Ouro, se mostra sublime e original sem precisar dizer uma única palavra – tampouco antropomorfizar seus personagens –.
Trama de “Flow”
Gato é um animal independente e solitário, que vive em um mundo pós crise climática, onde os humanos não existem mais. Mas, deixaram seus vestígios, como esculturas, utensílios e casas, como a em que o bichano se abrigava. Mas, sua paz e isolamento tinham os dias contados quando a água alaga tudo ao redor.
Assista ao trailer de "Flow" (Reprodução/YouTube/Fãs de Cinema)
À deriva e sem onde se refugiar, Gato encontra amparo em um barco povoado por uma Capivara, um Lêmure, uma Ave e um Cachorro, cada um com personalidade e costumes próprios, e, por vezes, divergentes. Para sobreviverem àquele mundo em que só se via água, as espécies precisam encontrar um equilíbrio entre si e a natureza desarmônica ao redor.
A grandiosidade de “Flow” mora na simplicidade
Utilizando do 3D criado com recursos e equipe limitadas, a animação do cineasta Gints Zilbalodis se nega a seguir a “fórmula Disney” para se destacar. Guiada por tons opacos e visuais deslumbrantes, que abusam das texturas do novo universo que a força d’água criou, “Flow” não opta pelo sentimentalismo humanoide, embora, de forma quase inata, atribua aos seus personagens, características que nós, humanos, acabamos imputando às espécies. Afinal, você nunca ouviu alguém falar que os cachorros são mais brincalhões, e os gatos, mais autônomos?
Cena de "Flow" (Foto: reprodução/YouTube/Fãs de Cinema)
Mas a alma da trama não está nesse detalhe, e sim, na forma com que a natureza e seus tripulantes sempre buscam um meio termo em resposta às adversidades, se adaptando e readaptando de forma cíclica, uns aos outros. Em uma fábula que remonta uma espécie de Arca de Noé, em que os salvadores são os próprios acolhidos, aparentemente exemplares “rejeitados” por sua própria classe, “Flow” mostra que cinema é muito mais que diálogo.
Sem uma única palavra durante todas as 1h25, o candidato letão à temporada de premiações – que inclusive se consagra como a única animação indicada também à Melhor Filme Internacional no Oscar –, consegue dizer tudo. Uma das melhores animações do ano não necessita apelar para um drama exagerado, para ser, de fato, emocionante por sua simplicidade de uma trajetória incomum, que beira o espiritual.
Cena de "Flow" (Foto: reprodução/Mares Filmes)
Guiado por um trabalho de som, trilha sonora hipnotizantes e um estilo único de animação, que tornam a ausência de diálogos ainda mais favorável ao desenvolvimento do longa, “Flow” transita entre momentos de alívio cômico, principalmente por conta das personalidades dos animais, e grande maioria de um tom contemplativo que nos leva a refletir sobre nossa finitude diante da vastidão do mundo. Com sua mensagem melancólica e esperançosa, ao mesmo passo, o longa de Zilbalodis prova que, melhor que dizer, é sentir.
Nota: ★★★★
Foto destaque: Personagens de "Flow" (Reprodução/Instagram/@flowofilme)