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[Crítica] “Ainda Estou Aqui” é uma poesia de amor contra as barbáries da ditadura

Um dos maiores lançamentos brasileiros em quase 30 anos chega ao circuito nacional de cinemas nesta quinta-feira (7); confira nossa crítica

07 Nov 2024 - 15h39 | Atualizado em 07 Nov 2024 - 15h39
[Crítica] “Ainda Estou Aqui” é uma poesia de amor contra as barbáries da ditadura Lorena Bueri

Não é à toa que nosso cinema ganhou o mundo com esse filme, que teve estreia mundial no Festival de Veneza, sendo premiado em Melhor Roteiro para a dupla Murilo Hauser e Heitor Lorega, seguindo para uma jornada brilhante em festivais e premiações como Vancouver International Film Fest, Festival de Nova York, Festival de Cinema de Londres, Festival do Rio, Critics Choice Awards e outros, sendo o indicado oficial do Brasil à possíveis vagas no Oscar 2025. É difícil falar sobre “Ainda Estou Aqui”, quando, na verdade, ainda penso diariamente sobre o longa, mesmo após tê-lo assistido há longos dias. É difícil digeri-lo. É impossível esquecê-lo.

Walter Salles é um mestre em nos flagelar o peito através de uma poesia suave que contrasta com uma realidade bruta e dura. É como se ele abraçasse seu coração antes de cravá-lo com um punhal. O cineasta fez isso no clássico “Central do Brasil” (1998), repetiu em “Abril Despedaçado” (2001) e tantas outras de suas obras. Mas, com “Ainda Estou Aqui”, Walter conseguiu emocionar o mundo com um drama real, de uma era sombria amplamente conhecida, mas tão pouco remexida, que se fortalece enormemente com as primorosas performances de Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro, trazendo à tona o maior lançamento brasileiro desde seu próprio “Central do Brasil”.

Trama de “Ainda Estou Aqui”

Na adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, temos no plano central a família Paiva, composta por Eunice (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro), Rubens (Selton Mello) e seus cinco filhos, Vera, Eliana, Nalu, Beatriz e Marcelo, o caçula . O longa nos remonta o início da década de 1970 no Rio de Janeiro, bem no olho dos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, os anos de maior repressão de um dos períodos mais sombrios do país.

Os Paiva eram bem relacionados e tinham uma vida de certos privilégios. Moradores de uma das áreas mais nobres do Rio, bem de frente à praia do Leblon, com uma casa grande, que acomodava bem todos os moradores e visitas frequentes dos amigos, em recepções animadas e bem servidas. Mas as boas condições de vida não os tornavam alheios ao mundo ao redor. Sem nem mesmo precisar ir longe, a rua de casa era fortemente controlada pelo exército, e a TV noticiava diariamente consequências da ditadura, como um sequestro de um embaixador em troca de prisioneiros.


Assista ao trailer de "Ainda Estou Aqui" (Reprodução/YouTube/Sony Pictures Brasil)


Apesar do tom solar da primeira parte do longa, as sombras sempre estavam por ali, rodeando a casa e a família. Eunice, que percebemos, não era alheia aos negócios de Rubens, que era um ex-deputado cassado após o golpe de 1964, é uma agonia evidente a cada ligação que o marido atendia despretensiosamente, a cada toque de campainha. Até que em mais um dia comum de um eterno verão carioca, a residência é “suavemente” invadida por militares à paisana que o levam de casa sem dizer como e para onde iria. Até mesmo nessa circunstância repressora, Rubens era de uma leveza abissal.

A partir do desaparecimento de Rubens, inicia-se uma nova fase em “Ainda Estou Aqui”. O sol e o calor da casa receptiva dos Paiva dão lugar à uma residência vazia e despedaçada, à espreita de algo pior, com pontas de esperança do retorno dele e com os temores de que nunca mais voltasse. Nessa névoa, Eunice é levada ao DOI-CODI, onde fica presa por incontáveis dias, antes de retornar a um lar que já não era mais o mesmo, e ter que lidar melindrosamente com seus filhos, para que não sentissem tanto a ausência do pai, enquanto tenta investigar o sumiço do marido.

Fernanda Torres é presença estremecedora e Selton Mello é ausência dolorosa

O Rubens de Selton é o sol de “Ainda Estou Aqui, tentando com muita ternura deixar a escuridão longe de sua família. Sua presença meteórica nos passa diante dos olhos como um flash de luz doce e leve. É como se o verão, caloroso e radiante, tentasse impedir o impiedoso inverno de congelar aquele lar. Não por acaso sua ausência dói tanto, sem que passemos um minuto das mais de 2h de duração sem sentir um vazio incessante junto à Eunice, as crianças e amigos.


Selton Mello como Rubens Paiva em "Ainda Estou Aqui" (Foto: divulgação/Primeiro Plano Assessoria)


Em uma performance intimista e minuciosa, o ator constroi um Rubens a partir da essência mais familiar e amorosa possível, através de um roteiro potente e que adapta com maestria as palavras e memórias de Marcelo, narrador-testemunha dessa história real. É nos detalhes que o personagem se desdobra em puro afeto com todos ao redor, fazendo com que os pequenos e cotidianos momentos em família se tornem uma pílula de saudade que Walter está pronto para injetar no público a todo e qualquer instante.

No revés, vemos Fernanda Torres dando vida ao que Fernanda Montenegro consagrou como “um nível transcendental de atuação”. Ela é O nome de “Ainda Estou Aqui”, vivendo a personagem central da trama, mas indo muito além da Eunice Paiva que é um símbolo na luta contra a ditadura militar. Aqui, Fernanda nos apresenta todas as faces dessa mulher, como merecia.


Fernanda Torres como Eunice Paiva em "Ainda Estou Aqui" (Foto: Alile Dara Onawale)


Desde o início é notório que Eunice é bem mais que só a matriarca da família. Vemos desde suas primeiras cenas que é um alicerce para os Paiva, de Rubens ao caçula. E é na ausência súbita do marido e dos próprios traumas vividos nos dias em que esteve detida, que a maior grandeza da personagem nos é dolorosa e brilhantemente revelada. Eunice transparece uma rocha que não se deixa esmorecer diante do terror da incerteza do paradeiro de Rubens, enquanto se desdobra em duas para que os filhos não compartilhem da dor do real motivo da ausência paterna e a busca pela verdade que atravessa esse sumiço.

Fernanda Torres é uma força da natureza como Eunice. Sem nenhuma espécie de mimese caricata, dá ao filme a força desse símbolo, com uma performance potente, crua e terna que traduz a trajetória de luta dessa mulher, sem ao menos ter o direito puramente humano de viver seu luto, luto esse que foi atravessado por décadas de uma batalha movida pelo amor. Eunice é uma mistura descomunal entre força e afeto.


Fernanda Montenegro como Eunice Paiva em "Ainda Estou Aqui" (Foto: divulgação/Primeiro Plano Assessoria)


E em uma sacada de mestre, Walter Salles dá ao público o presente de assistir às duas Fernandas, filha e mãe, encarnando a mesma personagem. Fernanda Montenegro dá vida à Eunice dos anos 2000, já bem idosa e debilitada. Sem precisar dizer uma única palavra durante sua participação especial, Montenegro exemplifica o porquê é a maior atriz do Brasil, com um dos trechos mais emocionantes do emocionantíssimo filme, o fechando com tamanha destreza e humanidade.

Primor técnico arremata a grandeza do longa

O filme também se engrandece na parte técnica impecável, que nos transporta diretamente aos anos 70, desde uma fotografia, direção de arte e figurinos, à uma trilha sonora e som totalmente imersivos. Para além de um Rio de Janeiro reconstruído perfeitamente como na década, a casa dos Paiva se torna um personagem à parte na trama, graças, muito, ao primor técnico.

A fotografia de Adrian Tejido, unida com a trilha de Warren Ellis, fazem com que o lar inicial e as doces memórias familiares gravadas em uma Super 8, se lancem a um ambiente escuro e sombrio, ao passo em que a ditadura entra do portão para dentro, invadindo o templo daquelas pessoas. Tudo muda naquele ponto. Nem mesmo a praia, outrora ensolarada, tem mais cor e calor. É como se a vida e a alma de Eunice, sobretudo, se tornasse cinza. O público sente tudo isso graças ao trabalho técnico categórico, que só engrandece o campo para as atuações brilharem ainda mais.


Família Paiva em "Ainda Estou Aqui" (Foto: Alile Dara Onawale)


Conclusão: É para lembrarmos; para nunca esquecermos

“Ainda Estou Aqui” não seria tão necessário se não vivêssemos à iminência de que as mazelas permanentes da ditadura sejam esquecidas, endossado por comentários disfarçados de nostalgia como “aquela época que era boa”. Aquele ano que durou 25 anos e trouxe um mal irreversível à história não só do Brasil, mas do mundo, não pode, jamais ser esquecido ou ignorado, e a obra reaquece a memória mundial e abre os olhos aos perigos do facismo que continua à espreita em pleno século XXI. Walter Salles cria uma janela a um passado recente, aberta através da força e da dor de Eunice e sua família para que nunca nos esqueçamos e que jamais caiamos no erro de repeti-lo.


Nota: ★★★★★


Foto destaque: Pôster de "Ainda Estou Aqui" (Reprodução/Primeiro Plano/Foto: Alile Dara Onawale)

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